A vida é uma sacana. E a perda gestacional dói, e muito!
A vida é uma sacana. É tudo o que me apetece dizer hoje.
Primeiro dá sem pedirmos. Aceitamos. Depois descobrimos que não só deu sem pedirmos, como deu em dobro. Aceitamos, celebramos, amamos. A sensação de ter duas vidas a crescer em mim era inigualável.
Fazemos planos.
Este ia ser o maior desafio da nossa vida. E nós estávamos a preparar-nos para ele com muito amor.
Depois, de repente, a sacana tira-nos o chão. O coração de um dos nossos gémeos deixou de bater.
Estou zangada, revoltada, magoada. Para quê fazer-me passar por isto mais uma vez? Viver duas perdas já não tinha sido suficiente? Era mesmo preciso isto? Eu nem pedi nada desta vez! Para quê fazer isto? Dar sem eu pedir, deixar-me assustada, fazer-me aceitar o desafio, celebrar e amar os dois de corpo e alma para depois me tirar um deles? Não podia dar-me só um logo de início? Qual o objectivo de tanto sofrimento?
Eu costumo acreditar que tudo acontece por uma razão, mas desta vez não estou mesmo a perceber qual é.
É a terceira vez que passo por uma perda gestacional. Com o passar dos anos, parece que me esqueci de como esta dor é intensa e aguda. De como parece querer arrancar-me o coração do peito.
Quando o ouvi dizer “em relação ao segundo bebé as notícias não são as melhores. O coração parou de bater, já não há qualquer fluxo de sangue no cordão.” foi como se arrancassem um pedaço de mim a sangue frio, sem qualquer anestesia. Haverá anestesia possível numa situação destas? Não, não há.
Depois, vêm todos os “Será que”. Será que trabalhei demais. Será que devia ter descansado mais. Será que me devia ter alimentado melhor. Será que a culpa é minha.
Depois de uma perda, há sempre uma parte de mim que fica com a sensação de que fui a responsável por este desfecho. Ainda que racionalmente saiba que este risco existe sempre, e nesta gravidez sabia desde o inicio que o risco era acrescido. Ainda assim, o meu lado emocional e o meu coração de mãe ponderam que eu possa ter tido alguma responsabilidade.
Ficar com um colo vazio dói sempre. Não, o facto de já ter 4 filhos maravilhosos e saudáveis não faz com que doa menos. Não, o facto de ainda ter um bebé que está a crescer bem também não apaga a dor. Um filho é um filho. Amamos aquele filho a partir do momento em que sabemos que o seu coração bate em nós. E eu vi este bebé duas vezes. Ouvi o seu coração. Na segunda vez, o facto de ter uma frequência cardíaca muito mais fraca que o gémeo 1 deixou-me preocupada, mas a médica que me viu nesse dia desvalorizou. Ontem soube que isso era o início do fim. E que de qualquer forma não haveria nada que pudesse ter feito diferença.
Agora estou dominada pelo medo. Tenho medo de perder o gémeo que ainda cresce na minha barriga e no meu coração. Medo de amar, de o amar ainda mais e depois vir a perdê-lo.
A primeira coisa que pensei ontem, no meio da mágoa e da amargura, foi tentar ignorar este bebé nas próximas semanas, talvez assim não me custe tanto se também o perder.
Mas eu não quero ser esta pessoa fria e amarga. E este bebé não merece isso. Este bebé merece ser amado, merece sentir este amor enquanto o seu coração bater. Serei imensamente grata se for toda uma vida… Mas se este bebé também partir, merece levar com ele este amor, tal como o seu gémeo levou.
Serei sempre mãe de gémeos. Simplesmente nunca poderei dar colo a um deles.
Quando decidi partilhar a alegria desta gravidez antes de fazer a eco dos 3 meses, foi com plena consciência de que isto poderia acontecer, e que se acontecesse eu não me iria fechar na minha dor. Mas sempre tive a esperança de não ter de voltar a falar sobre isto na primeira pessoa.
Ontem chorei. Chorei muito. Hoje precisei escrever sobre isso.
Partilho convosco este momento difícil. Porque para mim escrever é uma terapia. E porque a perda gestacional não é assim tão excepcional quanto se pensa. Acontece frequentemente. E acabamos isoladas na nossa dor, com a sensação de que o resto do mundo não percebe e desvaloriza aquilo que vivemos, aquilo que sentimos. Como se uma perda precoce não fosse algo significativo. Como se não amássemos o nosso bebé desde que sabemos que ele está ali. Como se não tivéssemos já feito tantos planos para ele. Como se ainda nunca tivéssemos imaginado como ele seria, como seria o seu nascimento, como seria dar-lhe colo. Como se o amor de mãe só se tornasse real com a concretização, como se a maternidade só começasse no momento do nascimento.
Não. Não é assim. Uma perda gestacional é real tal como o nosso amor. E dói. Dói muito. É preciso aceitar isso, e parar de desvalorizar estas situações que nos fazem sentir tão frágeis, tão pequeninas.
É preciso parar de dizer coisas como “deixa lá, já tens outros”, ou “deixa lá, podes sempre tentar outra vez”, ou “deixa lá, ainda és nova”.
Parem de dizer “deixa lá”. Parem de tentar querer que aquela mãe sofra. Ela vai sofrer, e sofre ainda mais com os comentários que fazem parecer que a sua dor é ridícula.
Aceitem o sofrimento. Acolham a dor. É o melhor que podem fazer por aquela mãe nesta situação.
Felizmente tenho amigas que souberam acolher a minha dor e dar-me colo, mesmo à distância. Amigas com quem pude chorar sem ver a minha dor minimizada. Amigas que me disseram que ignorar este bebé que ainda tenho a bênção de ter comigo não seria justo nem possível nem iria minimizar a minha dor. Amigas que me disseram que tenho o direito de estar zangada e revoltada. Que tenho o direito de chorar a minha perda.
Foi igualmente difícil contar aos miúdos. Tirando o mais velho, os outros ainda acreditam na cegonha. E no pai natal. E na fada dos dentes. Quero que tenham uma infância cheia de magia, já que a vida adulta é muitas vezes desprovida de magia. Demasiadas vezes.
Por isso, quando lhes dissemos que a cegonha nos tinha trazido os gémeos, dissemos que por vezes a cegonha traz os bebés, mas depois decide vir buscá-los, muitas vezes é porque estão doentes. Então ontem dissemos que a cegonha levou um dos gémeos. Ficaram tristes mas sabiam que podia acontecer e aceitaram. Ficaram felizes porque o gémeo que ficou está bem.
Quanto ao gémeo que partiu, porque é uma dúvida comum, não fazemos nada. Não há intervenção possível. Ficará ali durante toda a gravidez. Poderá atrofiar. Podemos apercebe-lo na altura do nascimento ou não.
Hoje resta-me aceitar mais este desafio, mesmo sem perceber o seu sentido. Dar tempo ao tempo para perceber a razão de ter de passar por tamanho sofrimento. Resta-me amar este bebé. Resta-me cuidar dele o melhor que posso e sei. Resta-me pedir a Deus, ao universo e à vida que não mo levem também.